Vidas vencidas

«Que eu, toda triste, acho que não sou. O certo é que tanto por mim mesma como pelo próximo, sei mais de tristeza que da alegria. Sou assim como se, dia a dia, me defrontasse com a figura do desengano. Mais até talvez que desengano. Da destruição.
E eis que me acode agora à ideia folhear um antigo caderninho de notas e revelar aqui as minhas juvenis reflexões: "Sou como a Fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias."
De resto, o enfado das rezas, nessa idade. Pior que enfado, esgotamento. Preces desatentas, as minhas, devido ao peixe dourado do aquário, os círculos que o peixinho desenhava, para trás e para diante, à volta do vidro. Também aos quatro continentes no tecto da sala: Europa, Ásia, África, América. Tão velha a casa que, ao ser construída, decerto não se conhecia ainda a Oceânia.
'Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas como nós perdoamos'... Rezava-se.
E eu que, então, perdoava tudo. Não hoje, que já sofri de mais.
A ladainha de Nossa Senhora, a criada Elisa quem a recitava num latim estragado: 'Túrris ebúrnea... Janua Caeli...' E nós: 'ora pro nobis, ora pro nobis'. E logo ela! Que entenderia de tal língua? O que seria, afinal, tanto para ela como para nós, aquela arremedada melopeia? Rezava-se à noite e às escuras, para se poupar electricidade.
Na Avenida, contudo, os candeeiros da iluminação pública. Quando não lua cheia na abóbada celeste. Parecia, porém, que se via melhor sem luz. Os rebrilhos do peixe na escuridão líquida e límpida. Os baixos-relevos em estuque no tecto.
Depois de terminadas as orações, a mãe inquieta por causa da galinha de choco na adega. Nem era para menos. Uma semana inteira a pedrês sem sequer engolir um grão. De febre? De fastio? Ai se amanhã de manhã a encontrava morta! Os pintainhos prestes a picar os ovos. Santantoninho!»

[Maurice Béjart - "Brel Barbara"]

Avec Elegance

Se sentir quelque peu romain
Mais au temps de la décadence
Gratter sa mémoire à deux mains
Ne plus parler qu'à son silence
Et
Ne plus vouloir se faire aimer
Pour cause de trop peu d'importance
Etre désespéré
Mais avec élégance

Sentir la pente plus glissante
Qu'au temps où le corps étais mince
Lire dans les yeus de ravissantes
Que cinquante ans c'est la province
Et
Brûler sa jeunesse mourante
Mais faire celui qui s'en dispense
Etre désespéré
Mais avec élégance

Sortir pour traverser des bars
Où l'on est chaque fois le plus vieux
Y éclabousser de pourboires
Quelques barmans silencieux
Et
Grignoter des banalités
Avec des vieilles en puissance
Etre désespéré
Mais avec élégance

Savoir qu'on a toujours eu peur
Savoir son poids de lâcheté
Pouvoir se passer de bonheur
Savoir ne plus se pardonner
Et
N'avoir plus grand chose á rêver
Mais écouter son coeur qui danse
Etre désespéré
Mais avec espérance

Jacques Brel

Estranhos

«As mulheres e homens que vêm da feira, elas com gamelas à cabeça e eles desasados e de cântaros na mão, passam-me debaixo das janelas como estranhos, que me são.
Dentro de qualquer panelita ou tacho de barro um punhado de sardinhas... E vão, devagar, trajados de domingo, calçados... E eu olho-os indiferente, pensando apenas no barro antiquíssimo de que eles se servem, na petinga salgada que comem, nas suas vidas, paralelas, e jamais concordes, jamais fundíveis com a dos bons proprietários.»
[Irene Lisboa, «Solidão» II, p.222]

Eis-me aqui



[foto daqui]

«Chamar 'tu' a Deus, com variantes que vão da imprecação à súplica, é o arbítrio maravilhoso da criatura que remonta à sua origem e a interroga, por ela chama e a sacode na distância. Quem pela primeira vez exclamou a primeira oração não a pode ter inventado. Só pode ter reagido a um chamamento com uma resposta, como Abraão com o seu "hinnèni", eis-me aqui. Eis-me aqui é a primeira palavra, a premissa de toda a oração. A criatura separa-se do resto da espécie e da criação, exclui-se para estabelecer a relação. A oração acontece sempre numa extremidade do campo. Lê-se no salmo 78: "E conduziu-os à sua morada santa" (Sl 78,54). Deus leva os hebreus para o deserto, porque aquele é o lugar do encontro. Não os chama num centro, numa praça, mas no isolamento inóspito do vento e do pó.
No deserto: é este o lugar físico da oração. O crente cria o vazio à sua volta e desta forma faz acontecer o encontro


[Erri De Luca, «Caroço de Azeitona», Assírio & Alvim, p.7]